Vida X Transplantes – Placar 0 X 0

Rita de Cássia Oliveira *

O maior desejo de um amputado é poder ter outra vez a parte do corpo que por alguma fatalidade lhe foi retirada de forma invasiva, traumática, fato esse que muda toda a rotina da pessoa desde o momento trágico da amputação. Afinal, a mutilação de um membro não fere apenas a parte física do corpo, mas também a parte emocional, a auto-estima da pessoa, chegando a podar sonhos e desejos planejados, um fato que acaba atingindo toda a família.

Por mais que o amputado tente refazer a sua vida, nada será como antes, sempre terá que encarar as adversidades da sua nova condição. Existem aqueles que conseguem passar por cima das cicatrizes e prosseguir, seja com muletas, próteses, cadeiras de rodas, mas a realidade é que nem todos possuem a mesma força mental ou espiritual e, para esses, as adversidades estarão sempre presentes para lembrar que a vida se divide no antes e depois da amputação.

Em decorrência disso, conflitos sérios são gerados, distúrbios que nem o melhor dos analistas consegue mudar a visão do quadro. Não existe analgésico capaz de amenizar as dores, sejam físicas ou fantasmas, o cérebro humano jamais vai aceitar que um membro foi retirado do corpo, porque o ser humano é a máquina mais perfeita, nenhum cientista será capaz de reproduzi-la com a mesma eficiência.

Entretanto, se não fosse a burocracia que rege a lei dos transplantes no Brasil, cobrando ética quando isso poderia ficar no fundo da gaveta, ah!… como tudo poderia ser simplificado e isso vale para transplante de membros e órgãos.

Para quem não sabe a importância que isso pode representar na vida de quem precisa tanto de uma mão estendida a doar a um órgão ou um membro, pode achar que este artigo não passa de uma bobagem, uma chatice, no entanto, existe um público que sente na pele esse drama e sabe discernir a importância do perder e adquirir a mesma capacidade de antes mediante o gesto da doação, e vai compreender a essência desta sopa de letrinhas capaz de fortalecer corpo e alma.

É preciso maior conscientização de que não há nada que se possa fazer por um morto, no entanto, há muito que pode ser feito por um vivo, e como há! Bastam leis mais flexíveis, profissionais mais capacitados e parentes de quem acaba de deixar de vestir as vestimentas do espírito capazes de abrir mão de peças de reposição que não podem ser encontradas expostas em vitrines e nem fabricadas com o mesmo rigor de qualidade de fábrica da que vem acoplada ao frágil corpo, já no nascimento, tudo em prol de quem precisa continuar por mais algum tempo nesse estágio na Terra.

Em julho deste ano, o médico Pedro Cavadas (foto) revolucionou o mundo ao realizar na Espanha uma das cirurgias mais esperadas os transplantes mais esperados: um transplante duplo de membros inferiores (veja a matéria) num paciente entre 20 e 30 anos de identidade preservada que, se não fosse o transplante, estava renegado a uma cadeira de rodas, pois não tinha condições nem mesmo para usar próteses.

Segundo prognósticos do médico, o paciente deverá andar entre seis ou sete meses após o procedimento realizado na madrugada do dia 12 de julho de 2011, no Hospital La Fé em Valência, na Espanha. A cirurgia durou a noite toda daquele domingo para segunda-feira e reuniu cerca de 50 integrantes da equipe do conceituado cirurgião.

Se no Brasil existissem políticas públicas mais sensatas e o Ministério da Saúde fosse provido de pessoas mais humanas, talvez nós, brasileiros, tivéssemos um destino com mais qualidade, com direitos a receber transplantes de forma legal, sem práticas ilícitas, sem membros ou órgãos marginais, adquiridos por quem detém condições socioeconômicas e se sujeitam a pagar o preço pedido por quem quer fazer o procedimento às escusas.

Quando alguém que perde um ente querido abre mão de órgãos e membros desse que não mais vai precisar dessas partes em doação a outrem, promove um bem estar que não tem preço, sem falar que em cada pessoa que recebe a doação, o doador continuará com uma parcela viva, o que traduz, que o ente querido vai continuar vivendo. Além disso, este gesto de amor é uma forma de estreitar laços e abraçar quem recebeu a doação, como sendo parte de sua família, afinal, ao receber o órgão de um parente querido, simultaneamente, o mesmo ingressa na família do doador e a gratidão supera o amor, a doação supera a perda, com isso, todos saem confortados nessa troca mútua de sentimentos.

É hora de todos se reunirem e lutarem por políticas nesse sentido, afinal, os mortos merecem ser lembrados e respeitados, mas não precisam de órgãos e membros, já os vivos mutilados, ou aqueles presos às máquinas de hemodiálise, porque os rins não funcionam; ou aqueles condenados à morte e torturados dia-a-dia porque o fígado pifou; além daqueles que os pulmões cansaram de aspirar; bem como os deficientes visuais que poderiam voltar a enxergar a luz do sol, o olhar dos filhos; e quantas pernas poderiam devolver os passos de quem sofre pelas lembranças bonitas de quando podia caminhar sem medo de ser feliz; e braços que poderiam devolver os movimentos e a independência a quem sofre com próteses rudimentares que só machucam e ainda têm um custo altíssimo.

Ninguém precisa ficar preso a antigos mitos ou tabus de que os mortos precisam estar completos no caixão. E no caso dos mutilados, não vão incompletos também? É só uma questão de amadurecimento de que um corpo pode ser enviado à sua última morada, bem acomodado num caixão, com espumas, algodões e muitas flores, que ninguém vai perceber nada, o espírito, esse sim, precisa estar inteiro.

Enquanto as partes doadas, será uma forma de o doador continuar vivo, andando, enxergando através dos receptores. É uma matemática simpática, pelo lado lógico, perde-se um e ganha-se o mesmo, porém, fracionado em várias partículas de vidas em pessoas, que juntas, formarão em elo e a família cresce, o que significa que a dor diminui, no lugar de lágrimas surgem sorrisos nos semblantes de quem foi beneficiado e com certeza nos dos parentes que permitiram a doação, afinal, na realidade, espíritos não morrem. E mais, o corpo que servirá para que outros readquiram formas de continuar vivendo com qualidade, o seu ex-dono, em alguma dimensão, o espírito com certeza ficará satisfeito, pois mesmo depois que partiu, foi capaz de ser útil a outros irmãos e nesse jogo do ficar contente, a brincadeira vira coisa séria, não é um mero conto de fadas, um artigo fictício, é um jogo entre a ciência e a vida, e o vencedor aclamado é a VIDA e o troféu pode ser seu.

* Reside em Nanuque (MG), Rita de Cássia Oliveira é professora e advogada formada pela UNB do Rio de Janeiro. Redige textos para jornais e revistas da região. Vítima de acidente, teve a perna direita amputada e vem erguendo  a bandeira em prol dos direitos dos amputados e necessitados de transplantes diversos.

 

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Passo Firme – 13.11.2011
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5 comentários em “Vida X Transplantes – Placar 0 X 0

  1. Esta tua postagem é muito bacana mesmo, bem interessante.
    Vou dar um UP e mante-la ainda no topo dos tópicos, aproveitando para deixar dois links para matérias que penso serem relevantes para o tema desta comunidade, de certa forma.
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    Mulher amputa perna gigante, mas esta não para de crescer.
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    Menino que nasceu com 3 braços e 4 pernas mostra novo corpo após cirurgia.
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  2. É importante que as pessoas discutam mais a questão do transplante em nosso país, conscientizando a todos da sua importância, e a sua utilidade primordial que é a de permitir que outras pessoas permaneçam vivas e com mais qualidade de vida. A autora foi brilhante ao abordar de forma tão coerente esse tema tão pouco discutido em nosso País. Desde já a parabenizo juntamente com o blog por essa publicação que traz esperança ao coração de milhões de pessoas que lutam pela sobrevivência.

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