Considerações importantes sobre amputação e a realidade brasileira

Dr. Marco Antonio Guedes de Souza Pinto*

A amputação de um membro, como qualquer fato relevante que ocorra na nossa vida, é uma aventura e um desafio ao espírito. Perder um braço ou uma perna, ou parte deles, não tem absolutamente nenhuma graça, assim como não se trata de algo charmoso, como as peripécias de um Indiana Jones no cinema. Estarmos diretamente envolvidos no fato, como protagonistas principais, tem mais a conotação de um pesadelo do qual queremos acordar rapidamente.

CAUSAS – Existem várias causas que podem levar à amputação de um membro. A mais comum, segundo dados extraídos de países desenvolvidos, como Suécia e Dinamarca, é a doença vascular periférica. Trata-se de patologia secundária a doenças sistêmicas como o diabetes e a arteriosclerose. A amputação, nesses casos, vai ocorrer já na terceira idade, como conseqüência da evolução natural da doença de base.

Embora não existam dados oficiais em nosso país, por não se tratar a amputação de um evento de notificação obrigatória, acreditamos que em nosso meio as estatísticas sejam significativamente diferentes, sendo bastante expressiva a incidência de amputações de causa traumática devido ao trânsito caótico das grandes cidades e a violência urbana conseqüente às grandes aglomerações populacionais.

A população jovem, nesse caso, será bem mais afetada, com todas as consequências advindas, como o fato de se tratar de força produtiva ou de existirem dependentes da pessoa amputada que serão diretamente envolvidos nos eventos subsequentes. Outras causas, não menos importantes, mas de menor significado estatístico, seriam tumores malignos ou benignos dos membros, má formações das extremidades ou mesmo a agenesia das mesmas.

De qualquer forma, uma vez confrontados à amputação, fato irreversível, tanto a pessoa envolvida como os órgãos de saúde são premidos a tomar medidas imediatas. Infelizmente esta última frase é utópica do ponto de vista órgãos de saúde, pois esta premência da parte deles inexiste. Fica a parte relativa à pessoa amputada e, aí sim, muito, ou tudo, poderá ser feito.

CONHECENDO A REALIDADE – Momentos de sofrimento têm a característica de nos tornar introspectivos, rever os nossos valores, as nossas metas existenciais. A perda de parte significativa do corpo de maneira tão evidente trás à superfície a presença desta constante companheira, quase sempre invisível ao nosso consciente, a morte. Realizamos que ela é inexorável e inevitável. Somos reconduzidos à condição humana.

Um grande problema das pessoas, que até as impede de viver de maneira mais justa, é o fato delas agirem como se fossem eternas. Decisões cruciais para a qualidade da nossa vida podem ser totalmente diferentes se tomadas com a consciência da nossa finitude. Podemos mesmo afirmar que em momentos de decisões importantes, a morte é conselheira das mais sábias. Trocando em miúdos, quando, ao tomarmos uma decisão, nos lembramos que vamos morrer um dia, aumentamos a chance dessa decisão ser mais adequada em relação à nossa vida.

Com a amputação fica quase palpável a dicotomia entre o corpo e o espírito do homem. Podemos perceber que, embora o nosso corpo tenha sido atingido, existe algo que o ocupa que permanece inteiro, como se o cavalo tivesse sido afetado, mas não o cavaleiro. A função do cavalo é, segundo a vontade do cavaleiro, transportá-lo pelo mundo. Tem gente que vive somente para a aparência do cavalo, esquecendo que, embora seja interessante ele ser bonito, trata-se somente de um veículo para o seu dono. O que realmente importa no cavalo é que ele seja um bom transportador, e aí sim, o melhor possível.

O COMEÇO DA REABILITAÇÃO – A percepção disso tudo pelo amputado estará intimamente relacionada à qualidade da sua reabilitação. Não deve ele se perder só nas considerações em relação a reposição cosmética do membro afetado. Este é um primeiro e compreensível enfoque, como se fosse possível voltar o filme, desfazer os fatos, refazendo-os de maneira mais favorável.

A compreensão clara do que aconteceu torna-se fundamental. Embora pareça óbvio, isso não é verdade. A pessoa afetada pode levar muito tempo para realizar o que realmente aconteceu, passando anos num estado de esperança utópico com todas as conseqüências que isso trás. É claro que, neste caso, nenhuma prótese será boa, pois todas deixarão a desejar em algum aspecto. Nenhuma será igual à “perna” perdida.

Já quando a perda é devidamente compreendida, a busca se torna objetiva. Existe uma consciência de que o corpo tem um problema mecânico para ser resolvido, mas a integridade do Ser é preservada. A perda desta integridade, se ocorrer, será auto infligida, isto é, somente o próprio ser tem o poder de se lesar. A compreensão deste conceito tem papel fundamental no que chamamos reabilitação da pessoa amputada. O conhecimento exato da dimensão da perda é que vai permitir a busca objetiva da reabilitação.

A equipe de reabilitação deve obrigatoriamente incluir profissionais que tenham essa compreensão e a capacidade de transmiti-la com clareza ao paciente. Temos profunda convicção de que o maior dano infligido ao amputado, nos dias de hoje, é o dano psicológico, ou seja, a sua retração perante a comunidade.

Todo e qualquer valor é sempre correlato à uma unidade de referência, sem a qual fica impossível ser quantificado. Quando se vê amputado, o paciente busca avaliar sua nova condição, e sua referência são as pessoas à sua volta. Estas, começando pelo médico, passando pelo pessoal paramédico, e chegando nos seus amigos e parentes, se comporta como se ele fosse um pobre coitado, definitivamente prejudicado, e sem muitas perspectivas. É claro que ele vai “vestir a carapuça”, pois, para onde se voltar, esta lhe será oferecida.

COMO MUDAR ESTE QUADRO – A nossa ideia é que este trabalho deve enfocar toda a comunidade, e a melhor maneira de realizá-lo é através dos meios de comunicação, onde amputados bem resolvidos devem ser mostrados como tal, sem disfarces, e inseridos na sociedade, tanto no aspecto social, como familiar e profissional. Ao se familiarizar com a imagem da pessoa amputada usando prótese ou não, mas fazendo coisas como todo mundo, como praticar esportes, trabalhar ou simplesmente em atividades de lazer, as pessoas poderão ter a dimensão justa do problema, e deixar de olhar para o amputado como um inútil para a comunidade. Então será o momento do próximo passo, que será voltado para a reabilitação da lesão física, na melhor forma possível.

Um bom aparelho protético, feito dentro de um serviço de reabilitação realmente comprometido com o bom resultado funcional, sem ter que medir os esforços para obtê-lo, onde sejam utilizados componentes protéticos de procedência confiável, vai custar caro. Consideremos como caro, um valor inacessível para, talvez, 80% dos pacientes, se tiverem que arcar com as despesas utilizando recursos pessoais.

A consequência disso é que, na busca de algo que possa “comprar”, o paciente e/ou seus familiares, começam uma romaria pelas oficinas ortopédicas até encontrar uma que lhes ofereça um produto acessível. E compram. Compram, entretanto, algo cujo produto não sabem avaliar. Fazem uma “medida”, um ou dois testes e… voilá! Saem da “oficina” com uma prótese embaixo do braço. Ao dizer para o “técnico”, que, provavelmente, se atribui o título de doutor, que o aparelho está machucando, recebe a resposta de que é como dentadura, deve ir usando que, com o tempo, se acostuma. Não podemos aqui esquecer que este paciente não tem experiência anterior, nunca foi amputado antes, e junto com a cirurgia não veio nenhum diploma de amputado. Infelizmente esta história é clássica.

A PROVA DOS NOVE – Ser encaminhado diretamente pelo médico que operou, para uma oficina ortopédica, também é muito frequente. Podemos afirmar que, na maioria dos hospitais, existem esquemas montados onde pessoas, devidamente gratificadas, oferecem aos pacientes amputados, ainda no leito do hospital, no pós-operatório imediato, cartões desta ou daquela oficina ortopédica, muitas vezes sem o conhecimento do médico que operou. Isso, entretanto, também não exime o médico da sua parte de culpa, pois ele tem que ser responsável pela orientação correta do seu paciente quanto à atitude subsequente. Amputação, como cirurgia, nada mais é do que um dos importantes atos em todo um complexo projeto visando à reabilitação do paciente amputado.

É fundamental que o cirurgião saiba disso e nunca considere seu trabalho completo ao retirar os pontos, acreditando, depois, que basta direcioná-lo para uma oficina. O acompanhamento do paciente na fase de protetização é que vai dar o retorno em relação ao ato cirúrgico praticado, se foi bem realizado ou se algo melhor ainda poderia ser feito. Este aprendizado vai refletir diretamente nas próximas operações. E ainda há a satisfação de avaliar o quanto foi valioso aquele cuidado a mais na cirurgia e como é importante, por exemplo, a preservação do joelho.

Amputado recente não é freguês, é um paciente complexo de reabilitação. Mesmo renomados serviços de reabilitação, freqüentemente, têm bastante dificuldade em tratar alguns pacientes, especialmente aqueles que representam o típico paciente amputado de membro inferior, os doentes vasculares, quase sempre idosos e com estado geral bastante comprometido pela própria evolução natural da sua patologia de base. Estes, se forem mal tratados, seguramente não vão mais andar. São pacientes com pouca margem de erro, aonde um pequeno ferimento no coto de amputação pode representar uma reoperação, a perda de um precioso joelho, e um alto índice de complicações trans e pós operatórias, quando não, o encurtamento precoce de uma vida já tão sofrida.

Só estes fatos já justificariam um olhar mais atento para o problema. Se, entretanto, contabilizarmos os custos que isso tudo representa, então a dimensão do problema vai tomar proporção bastante incômoda aos nossos burocratas. Certamente um paciente devidamente reabilitado, com um bom encaixe protético, a princípio, sai bem mais caro do que aquela prótese mais barata autorizada após a execrável licitação. Só que esse dinheiro barato está sendo jogado fora. Para confirmar isso, basta levantarmos com seriedade os números relativos ao abandono do uso das próteses fabricadas dessa maneira, pelos Centros de Reabilitação Profissional. E não paramos por aí, pois o paciente não reabilitado continua, sem produzir, dependendo da previdência social, da família, dos amigos, ou da divina providência. Em muito pouco tempo ele já terá custado muito mais caro do que se tivesse tido uma reabilitação adequada.

O nosso técnico em órteses e próteses, na verdade, não existe. Não há um bom curso que forme técnicos de qualidade em nosso país. O que existe é altamente deficiente. Em qualquer país sério este curso tem nível universitário e sua duração é de, pelo menos, dois anos, idealmente três.

Como podemos admitir que alguém que aprendeu de maneira autodidata, com educação primária, incapaz de consultar uma bibliografia internacional (a nacional praticamente inexiste), seja capaz de fabricar um encaixe protético moderno, montar e alinhar um aparelho complexo, ou avaliar uma complicação e decidir se ela se deve à um aparelho mal feito ou se é um problema médico, ou então, pelo menos, examinar um coto com suas mãos e interpretar o que está palpando. Só o conhecimento da marcha do ser humano já é um assunto suficientemente complexo, o que dizer da anatomia e da fisiologia das estruturas envolvidas. E, por enquanto, estamos tratando das amputações dos membros inferiores, cuja função é bem mais simples do que a dos membros superiores.

O QUE PRECISA MUDAR – A solução para estas deformações graves na atenção ao nosso paciente amputado existe, e um bom começo pode ser alterando os cuidados oferecidos pelos órgãos governamentais aos pacientes vítimas de amputação de membros decorrentes de acidentes de trabalho, que têm direito ao atendimento completo e gratuito, custeado pelo governo. Nestes locais, os aparelhos protéticos são orçados em licitação como na compra de mesas ou cadeiras para repartições públicas.

Os aparelhos são entregues já acabados, para o paciente treinar, numa afronta total à inteligência de qualquer profissional de reabilitação, pois é sabido que o coto de amputação vai sofrer um rápido processo de redução em seu volume ao ser submetido ao uso da prótese. O encaixe, que é a peça de ligação entre o coto e o aparelho, com uma ou duas semanas de uso, já precisa ser preenchido, e, em pouco tempo, não terá mais nada a ver com a nova forma do coto após a redução de volume.

Então começa a ferir o coto, e, uma vez que está acabado, está consequentemente perdido. Isso sem considerar que o alinhamento mais importante do aparelho, o dinâmico, feito à medida que o paciente vai conseguindo caminhar melhor e, portanto, transferir mais peso para o lado amputado, não vai poder ser feito, pois a prótese já veio acabada para o treinamento.

PROPOSTAS – Os centros de reabilitação deveriam ter oficina própria, com bons profissionais contratados e bem pagos. As próteses passariam a ser feitas ao preço de custo, os ajustes necessários feitos à medida que o paciente evolui no treinamento e o coto de amputação amadurece sua forma. Um só técnico, responsável pelo trabalho, pode ser cobrado pela sua qualidade, refazendo o encaixe quantas vezes for necessário, sem medo de perder dinheiro do próprio bolso. Se o seu trabalho não for bom, isso ficará rapidamente evidente, e outra pessoa poderá ser contratada no seu lugar. Com certeza todos os interessados sairão ganhando com isso. Entenda-se por interessados, pessoas que querem, prioritariamente, que o paciente amputado receba um tratamento justo, nada menos do que isso.

Outra consequência óbvia é que o custo desse tratamento passará a ser muito mais barato em um curto espaço de tempo, isto é, assim que a estrutura se ajustar à nova maneira de trabalhar (eu sugiro a criação de um centro de reabilitação experimental para servir de piloto aos futuros). Outro item importante é a criação, urgente, de uma escola para formar técnicos em órteses e próteses, nos moldes, por exemplo, das universidades americanas, o que parece ser mais adaptável ao nosso sistema de ensino.

Finalmente, e repetindo, nada melhor do que destacar nos meios de comunicação a imagem de pessoas com amputação de membro, devidamente reabilitadas, executando as tarefas do cotidiano, praticando esportes, tendo uma vida social e familiar com qualidade. Estas imagens irão servir de parâmetro para os amputados, os futuros amputados, e seus parentes, passando a definir a meta a ser conquistada, permitindo a cobrança aos prestadores de serviços, sejam quem forem, dos resultados objetivamente possíveis.

Fonte: CMW

*Matéria de autoria de Suzana Fonseca, responsável pela revista on line ‘Em Pé’, dirigida a amputados. Marco Guedes é ortopedista e traumatologista formado pela USP e fundador do Centro Marian Weiss (CMW), clínica especializada no tratamento de pessoas portadoras de problemas nos pés, pé diabético e amputados dos membros superiores e inferiores.

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Passo Firme – 15.05.2012
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4 comentários em “Considerações importantes sobre amputação e a realidade brasileira

  1. Diversos pontos do artigo de Sra. Suzana Fonseca, são descabidos. A realidade não é assim . Não posso concordar com tudo mas respeito opiniões, desde que não se faça disso verdade absoluta para os que não conhecem o ramo e nem entendem da profissão de protesista. Outras fontes devem ser consultadas e , ouvir vários lados da questão é necessário…Considerações importantes? Nem tanto…

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